O meu nome é João, tenho 19 anos, e estudo Literatura e Filosofia, em Lisboa. Durante alguns anos estudei música. Vim de uma cidade alentejana, rodeada de campo e de muralhas, na fronteira com Espanha. Esta geografia é curiosa. Porém, o meu primeiro grande assombro pela paisagem não foram os campos a perder de vista mas a enorme figueira do meu infantário, que cobria grande parte do pátio. Depois era seguir o carreiro das formigas, que iam e vinham para sítios que, hoje como dantes, desconheço.
A minha relação com as coisas sempre foi da ordem da contemplação. Talvez pareça um pouco doméstico e insignificante, mas, propondo-me alguns gestos de acção, comecei a regar algumas flores e plantas no pequeno varandim do meu apartamento em Lisboa. Plantei um medronheiro que depois esqueci, nas minhas idas e vindas. Confundi a alfazema com o alecrim. É verdade o que diz o poema de Tolentino Mendonça: «Depois de uma tarde a tratar do jardim / a nossa vida / importa menos». Cuidar: fazer a nossa vida importar menos.
Fiz ouvir um poema, e não por acaso. As palavras ocupam um lugar privilegiado na relação com as coisas. O olhar grego sobre o mundo originou a palavra cosmos. Esta palavra queria dizer na sua origem «harmonia, ordem». A nossa palavra mundo é herdeira da latina mundus, que significa «limpo». O mundo, na palavra humana, começou por dizer um olhar deslumbrado – eu diria até um olhar cuidador. Cuidar com o olhar, eis um desafio. Para mim, que me fiz servo da arte e da literatura, a tarefa do cuidado pode parecer, à primeira vista, um desvio. A arte, na sua aparente passividade, não diz respeito à tarefa ecológica (e a verdade é que poucas são as árvores que conhecem Camões). Porém, eu penso que a arte contribui, como sempre contribuiu, de modo fundamental para o cuidado da casa comum.
A encerrar a encíclica Laudato Si’ (que bebe o seu nome do primeiro poema conhecido em língua italiana) o Papa Francisco exclama: «Caminhemos cantando» (§244). Cuidar não é um caminhar sem mais, um caminhar que se gasta e cansa a cada passo, mas um caminhar que canta. É ao mesmo tempo a maratona e o hino de louvor. Adélia Prado, poeta brasileira, afirmava que toda a grande poesia é louvor. Sem o louvor, todos os esforços que fazemos em busca de um mundo melhor, são vazios de sentido. A arte oferece sentido às nossas deslocações, que, hoje em dia, se tornaram meras trocas de lugar. Viajamos como mercadoria. O louvor rompe esta lógica de comércio, porque ele não serve como moeda de troca. É gratuito. De louvor era o poema de Francisco de Assis. E era também de louvor o olhar daquela criança, alguns anos atrás, vendo uma figueira tão grande e formigas tão pequenas. «Caminhemos cantando», todos. Não exortou o papa a um «eu», mas a um «nós». É necessário reavivar este sentimento de comunidade. Simone Weil, mística, filósofa, profetizava no século passado: «A arte não tem futuro imediato porque toda a arte é colectiva e já não existe vida colectiva». A arte aproxima-nos do humano, porque colocada em meio da sua complexa imprevisibilidade. Ela é um dos modos de tratar o próximo por «irmão», seja este o sol brilhante, o bêbado na ponte, ou o vagabundo à entrada dos prédios. O mundo só será o mundo limpo, musical, quando tudo o que existe louvar.
Um salmo
Tudo o que existe louvará.
Quem tocar vai louvar,
quem cantar vai louvar,
o que pegar a ponta de sua saia
e fizer uma pirueta, vai louvar.
Os meninos, os cachorros,
os gatos desesquivados,
os ressuscitados,
o que sob o céu mover e andar
vai seguir e louvar.
O abano de um rabo, um miado,
uma mão levantada, louvarão.
Esperai a deflagração da alegria.
A nossa alma deseja,
o nosso corpo anseia
o movimento pleno:
cantar e dançar TE-DEUM.
(Adélia Prado)
(João Carvalho faz parte da Comunidade de Atravessados 2018/2019, um grupo de jovens voluntários que se encontra uma vez por mês na Casa Velha para rezar, estar e cuidar juntos de diferentes missões na aldeia de Vale Travesso e Ourém e da própria Casa Velha.)