A história do terreno é a minha história, por Margarida Alvim

2 de outubro de 2020, entrevista CIDSE –

Como descreverias a Casa Velha?
A Casa Velha é uma quinta situada na pequena aldeia de Vale Travesso, em Ourém, no centro de Portugal, a 20 minutos de Fátima. A quinta está na minha família há quatro gerações, desde o início do século XX. Era uma propriedade agrícola muito importante na região. Devido ao seu tamanho, teve e tem uma grande influência na gestão do território. A Casa Velha, em conjunto com o trabalho que a FEC (Fundação Fé e Cooperação) e a CIDSE (Coopération Internationale pour le Développement et la Solidarité) estão a desenvolver, assume uma abordagem ascendente, que consiste em ligar a experiência local às experiências a nível nacional, regional, europeu e mundial. Ajuda-nos a trabalhar, a encorajar e a inspirar-nos mutuamente, a reunir experiências locais para que possamos mostrar juntos que a mudança pode de facto acontecer e é possível.


Como tem a Casa Velha mudado nas últimas décadas?
Nos últimos 20, 30 anos, muitas pessoas deixaram o campo. Os sistemas rurais da região, baseados na pequena agricultura, foram profundamente impactados com a Política Agrícola Comum Europeia. A área encontrava-se fortemente despovoada, a quinta da Casa Velha estava a falhar como quinta e ao mesmo tempo a família também, por vários motivos, como por exemplo doenças.
Eu era necessária, e nós, a nova geração, sentimo-nos chamados a cuidar do povo, da propriedade e da terra e isso exigia outro significado, outro direcionamento. Há10 anos atrás, iniciamos algumas experiências em pequena escala. A Casa Velha acolheu pequenos grupos para um tempo juntos a trabalhar no campo, a rezar, partilhar, a ter um tempo de reparação. Esta pequena experiência cresceu extraordinariamente e hoje existe uma organização: Casa Velha – Ecologia e Espiritualidade.
A Casa Velha ainda é uma casa de família, mas a propriedade mudou enormemente. A garagem transformou-se numa capela – a capela do Bom Pastor, o palheiro passou a alojamento, o galinheiro agora é um Agroturismo.
Mas mais importante do que a mudança externa era que, este lugar se estava a tornar um lugar para mudanças internas.
A Casa Velha tornou-se uma casa comum, por onde muitos passam durante o ano – cerca de 2000 pessoas por ano, em 40 atividades diferentes. É um espaço aberto à cooperação entre diferentes vocações, ideias e competências.

Portanto, é uma casa de família, mas é um lugar onde podemos experimentar e apoiar a família humana, é um lugar onde podemos experimentar cuidar da nossa casa maior, da nossa casa comum.


É possível passar uns dias na Casa Velha?
Agora podemos acolher 12 a 15 pessoas no Agroturismo. Existem seis quartos duplos e uma sala comum. Temos uma capela que pode ser utilizada por grupos, um albergue que pode receber 27 a 30 hóspedes e temos também campos onde grupos de peregrinos vêm por vezes acampar.
Ao longo do mês, aos fins de semana, temos um grupo de voluntários da Casa Velha a que chamamos Atravessados. São 18 jovens de diferentes pontos do país que vêm, aos fins de semana, para um momento de descontração, oração, comunidade e missão: com as crianças da cidade, que visitam os idosos sozinhos e também cuidam da Casa Velha, a trabalhar na horta e a fazer o que for preciso.
Em algumas semanas, podemos receber os alunos da escola para alguns dias de atividades sobre ecologia e espiritualidade.


O que representam essas atividades na história da Casa Velha?
É uma história de mudança e de cuidado pela terra e com as pessoas, como um exemplo que os pode inspirar, nas suas escolas ou família, a recriar este vínculo com a terra e a cuidar da família e da comunidade.
Levamos sempre os jovens para passear pela quinta para ter um momento para contemplar, absorver, perceber que somos parte de uma história maior, de uma casa muito maior, constituída por toda a vida que nos envolve, porque a primeira reação quando perguntamos aos jovens “O que vês?” é “Não vejo nada”.
Ficam um pouco surpreendidos com o que está à sua volta, por isso começamos sempre com um período de contemplação e de nos sentirmos parte da criação, depois de gratidão por todas as coisas de que nos podemos lembrar nas nossas vidas, nas nossas situações pessoais, e que queremos cuidar do nosso meio envolvente.
Normalmente trabalhamos juntos durante uma noite a cuidar de uma área, que pode estar sufocada com ervas daninhas ou precisar de limpeza e, no final do dia, quando voltam para casa, podem ver que algo mudou por causa do que fizeram juntos.
Além disso, durante o mês, realizamos um retiro silencioso, ou retiros, de fim de semana de exercícios espirituais de Santo Inácio, durante 3 dias, com grupos de idades mistas, de cerca de 15 pessoas, em silêncio. Contamos com os nossos dedicados voluntários que cozinham e apoiam estas atividades.

Na Casa Velha, estou sempre eu e a Maria. A Maria trabalha aqui a tempo inteiro, a apoiar jovens, a cozinhar, no Agroturismo, e acolhe todos, e, é quase mais conhecida do que a própria Casa Velha.
Desde fevereiro de 2019, iniciámos também a experiência de ter durante alguns meses uma comunidade residente de voluntários.
Este mês provavelmente teremos um fim de semana em família com as minhas irmãs, sobrinhos e talvez envolver a família nas atividades. Penso que este poderia ser um mês típico, pois encontrarias peregrinos a ir para Fátima alojados na Casa Velha, bem como turistas que conheceram a Casa Velha no site de reservas e estão a passar alguns dias aqui.
Há dias em que estamos sós, em silêncio, e outros em que tudo se mistura, mas o espaço é grande e há esta sensação de que, de facto, também somos e fazemos parte da mesma casa nesta diversidade.


Que impacto tem a espiritualidade na tua vida?
Cresci aqui e valorizo a Casa Velha como um presente que recebi da minha família. Quando fui necessária para cuidar da casa e da família, senti que era um peso porque estava na universidade, a estudar em Lisboa, onde me formei em engenharia florestal. Surgiu então uma crise, em que, tive de assumir a Casa Velha e inicialmente pensei que talvez isso me afastasse do que queria fazer da vida, fazer outra coisa. Comecei a perceber que estava a passar por um processo espiritual, tendo a possibilidade de ser apoiada pelos exercícios espirituais de Santo Inácio.
A história da Casa Velha é também a minha história de conversão pessoal e de descoberta de vocação. Eu estava a começar a perceber o que Jesus me estava a perguntar e a pergunta que eu fiz, que me ajudou a voltar para a Casa Velha, foi: “Jesus, o que estás a pedir de mim e onde queres que eu esteja?”.
Fiquei um pouco confusa naquela altura, porque a minha mãe não estava bem e a casa estava destruída, então era difícil pensar em mudar a minha vida para me dedicar a algo que iria acabar logo. O que ouvi de Jesus foi: “Agora preciso de ti em casa, então vai para casa e cuida disso”. Continuo grata por esta decisão de deixar o meu trabalho e a minha casa em Lisboa.


Como é que a tua decisão mudou a tua vida?
Senti que estava onde deveria estar, sentia-me em paz, que estava no lugar certo. Esta mudança abriu-me outros caminhos a seguir e trouxe outras pessoas que queriam ajudar a minha família, as minhas irmãs, os meus amigos.
Era a minha vocação. A nossa vocação envolve sempre os outros e desenvolveu-se também como uma vocação para a família. Isto não surgiu do nada, tudo acontece porque nascemos com esta consciência de que estamos gratos por aquele lugar, outros cuidaram dele por nós e, por isso, é natural que cuidemos nós próprios dele.
Foi uma mudança radical para mim e tornou-se uma mudança para a família também. Inicialmente não sabíamos o que iria acontecer porque a minha mãe morreu um ano depois de eu ter regressado a casa, e aí percebemos que eram necessárias reparações. Começámos devagar, com pequenos projetos e conversas difíceis entre nós.
Houve muita tensão, mas sempre houve este desejo fundamental de nos focarmos no bem comum e todos rezámos juntos sobre o que iria acontecer. É por isso que, 10 anos depois, temos a Casa Velha de hoje, que continua a ser uma casa de família.
No entanto, a transformação que víamos nos edifícios externamente era principalmente uma conversão que estava a acontecer internamente e que exigia muita paciência, espera, cuidado e empenho, bem como compreender como viver com gratidão, abertura e cuidado.
É isso que estamos a fazer agora, porque um dia não estarei aqui. O início desta história não sou eu, é o Senhor da História, o Senhor da casa. As pessoas perguntam-me sempre o que o futuro nos reserva e isso preocupa-me, principalmente porque sou responsável por tudo o que acontece aqui.
O que eu posso fazer, o que nós podemos e temos feito é que a família, os nossos sobrinhos e sobrinhas vão crescendo envolvidos no projeto Casa Velha, todas as minhas irmãs, cunhados e os seus filhos contribuem e juntam-se aos nossos acampamentos nas férias e na Páscoa, fazendo o que é necessário fazer na Casa Velha.
Esta é a melhor forma de os fazer sentir a casa. Por outro lado, há muitas pessoas fora da família que se sentem chamadas para uma missão e vocação na Casa Velha. Este é um aspeto que está agora em cima da mesa e que importa analisar. Na Casa Velha, o que podemos fazer, cada vez mais, fazemos juntos, e olhamos juntos para ver o que vai acontecer, e como responder para sermos um corpo missionário e não uma pessoa ou uma família.


O que significa a Casa Velha para ti?
Descobri que a Casa Velha é mais do que paredes ou um local. É uma comunhão e uma comunidade que se unem na Casa Velha, e é realmente importante ter um lugar com história e raízes, onde haja espaço e tempo para vivermos juntos e descobrirmos juntos o que Jesus nos pede.