História

Com uma casa mãe e várias casas agrícolas, a Quinta da Casa Velha, em Vale Travesso, no concelho de Ourém, é, há mais de 100 anos, propriedade da família Alvim. Ao longo dos tempos e através de quatro gerações, esta família foi cuidando e procurando uma gestão agroflorestal sustentável e responsável pela comunidade envolvente, tanto como empregadora, como na procura, em cada tempo, de caminhos de sustentabilidade e compromisso com o Bem Comum.

E se a extensão da propriedade, com cerca de 67 hectares, a 17 quilómetros de Fátima, permaneceu inalterada até ao presente, em cada tempo, em resposta a diferentes crises e alterações de políticas para o desenvolvimento rural, foi sendo necessário buscar alternativas quanto à gestão e uso do espaço, bem como da relação com o território e comunidade em que se insere. É neste contexto que surge a Associação Casa Velha – Ecologia e Espiritualidade, com o desejo de responder aos desafios do tempo presente, gerando novos caminhos de desenvolvimento de base colaborativa, após cerca de 30 anos de declínio.

Nasceu nesta casa de família, na Quinta da Casa Velha, fruto de experiências de oração, serviço, partilha de vida e discernimento enraizado na espiritualidade inaciana, inspiradas pela presença de Jesus – Bom Pastor, em estreita ligação com a Terra e a Comunidade, as quais foram dando forma a uma intuição comum que reúne a família Alvim, um grupo de leigos (de diferentes idades, formações e origens) e duas ordens religiosas – a Província Portuguesa da Companhia de Jesus e a Congregação das Escravas do Sagrado Coração de Jesus. Os diferentes membros estão representados na Direção da Associação.

A Associação Casa Velha – Ecologia e Espiritualidade é uma instituição de identidade Cristã, com início em 2008 e constituição civil formal em 2012. Em abril de 2022, a Associação Casa Velha foi reconhecida como ONGD (Organização Não-Governamental para o Desenvolvimento) pelo Instituto Camões.

A beleza e a história da Casa Velha são por si vetores de conversão ecológica, despertando e devolvendo a cada um as suas raízes e histórias, permitindo o cruzamento e o reconhecer da nossa História comum, despertando o sentido de pertença, de interdependência, de louvor, de compromisso, do cuidado.

CATHERINE D’HOMMÉE

Catherine Marie d’Hommée nasceu em França em 1931, mas foi na Casa Velha que passou (feliz) mais de metade da sua vida e onde morreu a 27 de Janeiro de 2010, faz hoje 9 anos. Em 1965 casou com Henrique Alvim e trocou Paris por Vale Travesso, afirmando com frequência já estar aqui no Paraíso. A falta de electricidade e a vida espartana não a assustaram, pelo contrário, fizeram-na ainda mais agradecida com cada pequena coisa, experimentando o “quanto menos, tanto mais” (Laudato Si, 222).

Catherine era a terceira de seis filhos. Tinha 8 anos quando começou a 2ª Guerra Mundial. O seu avô materno morreu a combater na 1ª Guerra Mundial. Estudou piano, carreira que acabou por não seguir. Era uma apaixonada por jardins e flores, dos quais aprendeu a cuidar com a sua avó Marguerite. Os pais tinham uma casa na pequena aldeia normanda de St. Leonard, na baía do Mont St Michel, lugar onde frequentemente se refugiava e que muito a alimentou espiritualmente. Foi com todas estas raízes e história que chegou e cuidou da Casa Velha (o seu grande piano fez parte da bagagem). Na verdade, estas são as raízes profundas do que a Casa Velha é hoje, marcada pela sua abertura, acolhimento, confiança, criatividade, beleza, solene simplicidade, cuidado de cada detalhe, relação com a natureza e cuidado das pessoas, fé e sentido de pertença, de gratidão, de responsabilidade.

O amor com que viveu a sua vida e se dedicou à sua família e aos outros, transparecia o modo como se sentia amada e cuidada por Deus. E isso transformou necessariamente a Casa Velha, cada um de nós que cá nascemos e tivemos o privilégio de crescer com uma educação  e espiritualidade ecológicas, mas também os que cá passam nos últimos anos, com a nova Casa Velha (Ecologia e Espiritualidade).

Para além de jardineira, Catherine (a francesa, como era conhecida no Vale Travesso) tornou-se apicultora e pastora, e nós com ela! Cuidar das abelhas, na hora de maior calor, não era fácil, mas hoje em dia agradeço ter podido assim aproximar-me da maravilha e grandiosidade desta pequena criatura que nos ensina tanto sobre sentido de Comunidade e Cuidado. Era frequente termos borregos recém-nascidos na cozinha, por terem sido rejeitados pelas mães. Que festa! Ao domingo, cabia-nos ir em família, com um grande piquenique, pastar as ovelhas, que acabou por ser a forma de aprender ao vivo as parábolas do Bom Pastor, que enchem hoje a Capela da Casa Velha, antiga garagem.

Cuidava também das pessoas. Visitava pessoas mais necessitadas da aldeia (com as Conferências de S. Vicente de Paulo), dava catequese aqui na Casa Velha (tal como acontecia com a nossa avó paterna) e a casa estava sempre aberta a quem viesse. No verão recebíamos grupos de jovens de França, em peregrinação a Fátima, que por cá acampavam várias semanas. A Nossa Senhora que está na Capela do Bom Pastor foi trazida por eles.

Quando a Catherine e Henrique casaram e vieram viver para a Casa Velha, a casa estava fechada e teve de ser recuperada, com grande esforço e generosidade dos irmãos do meu Pai. A casa era de vários irmãos, gerida comunitariamente pela família.  A muita vida que ganhou, foi declinando a partir do fim dos anos 90. A nova Casa Velha surge a partir do auge desse momento de crise, que culminou na morte de Catherine em 2010. Tocava-nos a nós cuidar de algo tão central nas nossas vidas. O cuidar da família, das pessoas e da casa, gerou e continua a gerar esta Casa Velha – Casa Comum, onde experimentamos mesmo antes da sua edição em 2015, o sentido da Encíclica Laudato Si. Hoje em dia o seu piano voltou a tocar, com os netos e também alguns Atravessados (voluntários da Casa Velha) que tocam as suas partituras. Música celestial.

Passados 30 anos das últimas férias em França, em 2017 voltamos (nós 4 irmãs) a St Leonard, numa peregrinação às raízes, para recuperar memórias e sobretudo estarmos juntas em Boa Terra (num regresso ao seio materno), um teambuilding importante para podermos cuidar juntas da Casa Velha. O actual dono da casa dos nossos avós deixou-nos entrar e fazer uma visita. Perguntamos se podíamos ir ao jardim, lugar de tantas memórias. Levou-nos entusiasmado, até porque hoje em dia tem lá uma pequena oficina onde trabalha madeira e guarda lá um retrato de alguém que seria da nossa família e que o vai acompanhando e inspirando no seu trabalho. Quando chegamos ao meio do jardim e olhamos para dentro da oficina…tínhamos a Catherine à nossa espera, como que a dizer-nos o que tantas vezes nos repetia: Não tenham medo!

No verão de 2018 voltámos, desta vez com toda a família. Para entender melhor a História da Casa Velha como parábola do Cuidado da Casa Comum e de toda a Família Humana, e a sua história nesta Casa, era importante conhecerem as suas raízes. É muito importante conhecermos e fazermos memória da nossa história para podermos saber quem somos e ao que somos chamados nesta vida. E é importante  olharmos e celebrarmos juntos essa história, só assim saberemos viver juntos e cuidar juntos desta Casa Comum.

Então, Jesus retomou a palavra: «Em verdade, em verdade vos digo: Eu sou a porta das ovelhas. Todos os que vieram antes de mim eram ladrões e salteadores, mas as ovelhas não lhes prestaram atenção. Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim estará salvo; há-de entrar e sair e achará pastagem. O ladrão não vem senão para roubar, matar e destruir. Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância. (Jo 10, 7-10)

Louvado sejas Senhor, pela Catherine e pela vida abundante que deixou.

(Margarida Alvim, 27 de janeiro de 2019)

HENRIQUE ALVIM

Reconhecia-se facilmente pelo seu boné, que lhe protegia a careca, a sua bengala e pelo seu cigarrinho na mão. Gostava da vida no campo, enraizado na Casa Velha, muito agradecido com a sua família, com a sua mulher (vinda de longe) e as suas 4 filhas! Gostava em especial do tempo das vindimas, durante o qual tirava férias. E também de andar com o pastor e as ovelhas e pelos olivais, descobrindo fosseis no meio do que aparentemente seriam só pedras. Com eles fomos crescendo nesta espécie de Galileia, aprendendo a contemplar e reparar em toda a beleza à nossa volta e em tanto que nos é dado sem nada fazermos por isso. Fomos aprendendo a cuidar, a criar, a respeitar, a dar valor ao que tínhamos, a saber partilhar, a partir do orçamento familiar curto e esforçado de que dispúnhamos. Com ele crescemos na ecologia e na fé, ao ritmo dos passos que dávamos todas as noites na varanda a rezar o terço. No fim da vida teve de se deixar conduzir por nós. Sem poder andar, percorríamos as entrelinhas da vinha de carro, aprendendo juntos a reinventar as entrelinhas da Vida.

Henrique José e Jorge nasceram no Hotel Tivoli em Lisboa, a 13 de março de 1930. Filhos gémeos de Francisca e João Alvim, juntam-se a 4 irmãos (no total eram 13), os 2 anteriores também gémeos (estes verdadeiros, António Joaquim, anteriormente retratado nesta “crónica” e Nuno do Carmo). Vivendo até aí em Ourém, João Alvim tinha sido colocado como médico nos Hospitais Civis de Lisboa e nessa altura estavam ainda à procura de casa. Henrique, o meu Pai, sempre foi magrinho, o que levou a não ir à tropa. Formou-se em Engenharia Agronómica no Instituto Superior de Agronomia e o seu irmão Jorge como Engenheiro de Minas.

Apesar dos meus tios contarem que o meu Pai era muito de festas, ao contrário do Jorge, muito mais reservado, sonhador e artista (era um grande pintor), a verdade é que desde que me lembro dele, a memória que tenho é do seu desejo de sossego, sendo difícil para a minha Mãe arrancá-lo de casa ao fim-de-semana e férias. Bom, é certo que cometeu um grande feito: casar com uma francesa, e para além disso, pedi-la em casamento ao fim de 15 dias de se terem conhecido. Foi em 1965, nessa altura trabalhava na Secretaria de Estado da Agricultura em Lisboa, trabalho que deixou quando casou e vieram morar para a Casa Velha.

Passou então a trabalhar na Direção Regional de Agricultura do Ribatejo e Oeste, com base em Vila Franca de Xira, onde ia três vezes por semana, num tempo onde não havia ainda A1 (ou talvez, já a partir do Carregado). Saía de casa de madrugada (num Volkswagen carocha e mais tarde num Renault 4L, carros de serviço) e voltava noite cerrada. Durante a semana pouco estávamos com ele. Ao domingo tínhamos uma grande recompensa, ir pastar as ovelhas juntos em família, com um grande piquenique. Também dávamos grandes passeios, de onde sempre trazia algum fóssil, tinha um olho clínico. Quando saiamos de carro, gostava de imaginar animais em cada nuvem com que nos cruzávamos e começava a contar-nos histórias. Houve uma fase em que volta e meia tínhamos uma manhã de domingo de grande excitação, em frente da nossa micro televisão a preto e branco, onde ele iria aparecer no programa TV Rural, com o Eng. Sousa Veloso.

Era acusado de ser “demasiado honesto”, o que já revela as dificuldades que foi enfrentando ao longo da vida. Que bom ter um Pai reconhecido como “demasiado honesto”, com tudo o que isso representou para nós de Boa Terra para crescer e para aprender a cuidar da Casa Comum.

Acabei por ser a única a encaminhar-me para as ciências, o que o encheu de grande alegria. A verdade é que me influenciou muito na escolha do curso, e lá fui eu parar também ao Instituto Superior de Agronomia. Desde pequena que era bastante aplicada e tirava boas notas, motivo que o levava a falar com orgulho aos colegas da sua Caçula/ Benjamina, recordações que guardo associadas à Feira Nacional de Agricultura em Santarém, ponto alto do nosso ano na nossa infância e adolescência, onde festejávamos os meus anos. Muitas vezes dava-me queijos como presente de anos, será por isso que hoje em dia me dou sempre por satisfeita com qualquer queijo à frente? Mas quando fiz 7 anos, deu-me uma cassete dos ABBA, grupo que eu nem conhecia, mas que ele gostava muito! Foi uma boa surpresa para variar da música clássica que sempre ouvíamos com ele (e que hoje tanto agradeço!).

Ao longo da sua vida, a sua honestidade revelou-se de forma escondida (ou não fosse ele também José), perante a família, o trabalho, perante Deus. Se a minha Mãe, como estrangeira que era, abriu os horizontes da Casa Velha, quer na forma de arriscar com criatividade micro negócios (apicultura, produção de queijos, no meio de aulas de piano ao domicílio e o cuidar do dia a dia de nós as 4), quer nas relações com o mundo, o meu Pai era a terra firme, cheia de história.

A sua grande preocupação era o nosso sustento e também o seu sentido de missão no seu trabalho e na gestão da Casa Velha. Foi acompanhando do lado das políticas toda a mudança do mundo rural após a entrada na Comunidade Económica Europeia. Neste contexto, arriscou vários caminhos para o património rural da família, gerido comunitariamente, os quais nem sempre correram bem. A sua humildade deve-se ter ido aprofundando. Perante o declínio dos sistemas agrícolas de minifúndio, preocupado com o abandono rural da região e o seu impacto económico e social, arriscou dar o pontapé de saída de uma Cooperativa Agrícola e mais tarde da Adega Cooperativa de Ourém. Foi um fardo pesado de mais. As muitas preocupações e responsabilidades terão sido uma das causas do AVC que teve em 1995, a poucos meses da reforma, altura em que ficou hemiplégico.

De um Pai muito ausente, ou melhor, muito Terra de suporte e segurança, passámos a ter um Pai presente e dependente, tinha eu 21 anos e andava no 3º ano da Faculdade. É engraçado perceber como estes anos que foram tão difíceis para ele e para nós (as suas bombeiras), abriram e foram tão importantes para o que a Casa Velha é hoje. Foi do termos sido levadas a cuidar dessa fase, que nasceu o que hoje está tão enraizado na nossa identidade: o Cuidado uns dos outros, da Terra e da relação com Deus.

Viveu ainda 5 anos, tempo de graça para nos aproximarmos de fundo. A sua debilidade abria-nos essa oportunidade. Foi um tempo de crescimento no Amor, em tudo o que tem de dor e de transcendente, de entrega e relação na incapacidade, no tesouro existencial que cada um é, muito para além do que faz ou fez. A relação com a minha Mãe, de um amor que era verdadeiramente imagem de Deus, sustentou-nos nesta fase e fez transbordar a taça da Casa Velha para ser o que é hoje. Morreu dia 18 de Setembro de 2000, no dia em que iam começar as vindimas na Casa Velha, atividade que tanto gostava.

Naturalmente, ao longo dos anos, fui assumindo a responsabilidade da gestão agroflorestal a seu cargo e dos irmãos, o que me tem dado um novo entendimento de toda a sabedoria com que geriam esta terra, desde logo visível pela composição de diferentes espécies florestais a ocupar o solo, consoante as suas características edafo-climáticas. Entre outras coisas vou lidando com os atuais incentivos para o desenvolvimento rural. Há uns meses tivemos visita de fiscalização por parte de uma equipa técnica de Santarém. Um dos técnicos tinha ainda trabalhado com o meu Pai, quando soube que eu era filha, o seu semblante transfigurou-se…recebi indiretamente o sorriso luminoso do Pai Henrique, que tantas vezes sinto sobre mim, a abençoar-me e pacificar-me nas minhas dúvidas e inquietações ao pisar esta Terra, bem como a alegrar-se com o novo rumo tomado.

Partilho, para concluir, o conselho que me escreveu na fita de fim do curso, que nos pode guiar no Cuidado da nossa Casa Comum: ler e meditar o livro da Sabedoria. Amén.

 (Margarida Alvim, 13 de março de 2019)

ANTÓNIO JOAQUIM ALVIM

António Joaquim de Sousa Alvim nasceu a 12 de Fevereiro de 1928. É uma raiz muito importante da Casa Velha, da qual era o principal proprietário. Formado em Engenharia Agronómica pelo Instituto Superior de Agronomia em Lisboa, especializou-se em solos, tendo trabalhado grande parte da sua vida como investigador na então Estação Agronómica Nacional (EAN), atual INIAV (Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária). À data da sua aposentação (1993) era Investigador Principal da EAN. Morreu em Agosto de 2014, 15 dias depois da inauguração da Quinta da Casa Velha Agroturismo, a ocupar os antigos currais das ovelhas da Casa Velha, transformação que nos seus 80 anos foi acompanhando com entusiasmo e esperança.

Nos últimos anos fui ouvindo falar do Tio Toquim em diversas ocasiões, no contexto da Ecologia, nomeadamente nos projectos aTerra e Ca(u)sa Comum, dos quais a Associação Casa Velha foi parceira. Antigos colegas com que me cruzei, falaram-me comovidos e saudosos do seu valor científico e das suas qualidades pessoais. Também eu tenho muitas saudades do Tio Toquim. Da sua sabedoria humilde, que tanto me/nos ajudava. Compreendo bem a falta que faz aos colegas, simbolizando uma perda bem mais profunda, de saberes e competências, todo um património de conhecimento e suporte ao mundo rural que infelizmente se perdeu no nosso país, que pouco ou nada investe na investigação e extensão rurais, tão necessárias para podermos gerir bem os nossos territórios.

Hoje, para escrever este artigo, lembrei-me de ir buscar umas revistas “Mundo Rural” que me passou pouco tempo antes de morrer. Tratava-se de uma revista da LAC – Liga Agrária Católica (Acção Católica Rural), da qual fez parte nos anos 70/80. Referenciou-me particularmente os números entre 1974 e 1980, tempos conturbados em que o receio fez com que ninguém quisesse assumir a Direcção da revista, a qual ele decidiu assumir. Para além de passar a ser Director, o Eng. António Alvim era responsável por um artigo de aconselhamento agrícola, com os mais diversos temas técnicos cheios de indicações práticas suportados por desenhos que ele mesmo fazia. Qual não é o meu espanto ao deparar-me com o nº de Dezembro de 1978 que versava sobre “A situação ecológica mundial e a agricultura do futuro”. Começam a ouvir-se com frequência gritos de alarme sobre o rumo que leva a Humanidade e as dificuldades que se depararão à sua subsistência a médio, e mesmo a curto prazo, como consequência da exploração inconsiderada que se tem feito dos recursos naturais, escreve o Tio Toquim, que sofria verdadeiramente com a degradação dos solos que tão bem conhecia. O actual estado do mundo rural e todo o peso burocrático dos apoios concedidos para o desenvolvimento rural, muito afastados da realidade e das pessoas, conseguiam enfurecê-lo.

Solo, Terra…não poderia haver melhor imagem para o definir. Porque além de cuidar da Terra, foi terra de suporte para muitos, porque deu muito fruto. Porque estava normalmente invisível, na sombra. Era preciso entrar no seu tempo e no seu mundo, onde gostava muito de acolher todos os que se atreviam a aproximar e sentar ao seu lado e esperar…sim, as conversas eram longas, intervaladas com grandes silêncios solenes, que antecipavam algo que valia a pena ser dito…e escutado! O seu tempo tinha um Senhor, regulado pela Liturgia das Horas, que sempre o acompanhava. O seu sorriso luminoso transparecia Deus, a quem sempre confiou a sua vida. Cumpria o seu trabalho, cuidava da sua família e da gestão de todo o património agrícola familiar como servindo o próprio Cristo. Com ele e por ele trabalhava como leigo comprometido com a justiça e fraternidade.

Toquim era gémeo de Nuno do Carmo, 3º e 4º dos 13 filhos de Francisca e João Alvim. À data do meu nascimento já o pai exercia medicina geral em Ourém. Por isso, eu e o meu gémeo nascemos na Casa Velha em Fevereiro de 1928, tendo como parteiro o nosso pai. Tudo correu bem e, coincidindo o dia do nascimento com o dia da festa do Vale Travesso, foi lá a banda tocar e beber uns copos. (Memórias de infância e outras, António Alvim, Julho de 2013).

 Viveu com o seu querido irmão gémeo até aos 7 anos na Casa Velha, com a sua avó paterna, Júlia, de quem muito gostava e que lhe deixou em testamento metade da quinta, da qual desde muito cedo ficou responsável, em conjunto com 3 irmãos, um dos quais o meu Pai. A Casa Velha foi desde então Casa Comum, gerida com grande sentido comunitário, o que incluía o cuidado com a família e com todos os que lá trabalhavam, vindos da aldeia de Vale Travesso e arredores. Graças à sua generosidade quando os meus pais casaram, ficaram a viver na Casa Velha.

A reorientação da casa desde 2008 foi enraizada em muitos e bons momentos de conversas com o Tio Toquim. Nos muitos silêncios, fui conhecendo melhor todo o seu mundo interior e a Fonte que o alimentava. Com ele aprendi o que é o Bem Comum. Nas mudanças que foram acontecendo, foi acompanhando as intuições de mudança de rumo, com alegria de fundo, partilhando dúvidas mas dando muita força, conselhos, entusiasmando-se com os passos que fomos dando, com muita fé. Acompanhou todo o processo da constituição da Associação Casa Velha – Ecologia e Espiritualidade.

Ainda não chegou a Festa do Vale Travesso (está quase, este ano será a 24 e 25 de fevereiro), mas podemos ouvir hoje a banda a tocar no Céu. Como homenagem, termino com um excerto do Livro das Horas, de Rainier Maria Rilke, a lembrar o gémeo poeta Nuno.

Em todas estas coisas te venho encontrar,
Para as quais sou bom e como um irmão;
Enquanto semente nas pequenas te vens assoalhar
E às grandes grandiosamente te fazes doação.

Eis o jogo de forças estranhamente a aparecer
As coisas atravessam servindo no seu ser
Crescendo nas raízes, nas hastes desaparecendo
E nas copas como um ressurgir se movendo.

Rainier Maria Rilke, O Livro de Horas