Uma fotografia, por Madalena Meneses

Exposição Casa Velha
30 maio — 8 junho 2019
Livraria Ler Devagar, LxFactory, Lisboa

«Querida Casa Velha,
É tão especial aquele último virar à esquerda e percorrer esse último momento do caminho para chegar a ti, cheio de luz a passar entre a vida que há naquelas árvores. E de repente entro no portão e caem as máscaras. Aí é tudo tão puro, tão vivo, tão teu, tão «original» e tão grande que me levam logo às minhas raízes e à minha pequenez. As muralhas caem, o coração esvazia-se e Deus inspira e faz o essencial ecoar, a Seu tempo. Acho que é por isto que gosto tanto de ti… porque me exiges verdade e autenticidade logo à entrada, porque me acolhes exatamente como sou e porque cuidas de mim ao e com pormenor. (…)»

Uma vivência, por Laura Marques

No momento favorável, eu te ouvi, no dia da salvação, eu te socorri. Este é o tempo favorável, este é o dia da salvação. (2 Cor 6,20)

Sinto que Deus nos vai cumprindo a cada instante, fazendo-nos experimentar a realidade que brota do coração. O poder experimentar na Casa Velha, o horizonte de comunhão há tanto sonhado – comunhão que brota do «encontro connosco próprios, com os outros, com Deus, com a natureza». Experimentar um projeto que integra e une o que não pode ser separado: o crescimento e a descoberta pessoal; o fortalecimento do sentido de comunidade; o serviço à Terra. Um religar para cima, um religar para baixo, para as nossas raízes, um religar para dentro, uma viagem sem fim. «Um espaço que nos repara, regenera e envia de novo» (Oração Casa Velha): ali foram-se unindo os ramos ao tronco e às raízes, ali experimentando-me pertença o meu olhar e o sentido de Casa foi-se regenerando, e à semelhança da Casa Velha, o desejo de honrar também eu as minhas raízes. E desde a Casa Velha, fui enviada, de novo, de regresso a Casa. Transbordo gratidão e raízes, «de onde brota a cada instante o novo e o possível».

«Cala-te, meu coração,
Que estas árvores altas
São orações.
As raízes
São ramos debaixo da terra
Os ramos,
Raízes no ar».
Rabindranath Tagore

[horizonte da Casa Velha, desenhado durante a Comunidade residente Fiéis Jardineiros]

Uma relação, por p. Pedro Walpole, sj

A Casa Velha é uma paisagem panorâmica de relações, muito real e tangível, em que toda a terra e a vida na aldeia é conhecida e partilhada por todos; não a partir de uma pesquisa no google mas da boca dos mais velhos e daqueles que caminham a passos largos para uma nova vida. A Casa é a família e a aldeia; os pais são homenageados e os netos comemorados, há sempre um sentimento de casa. Vivem-se dificuldades, a família tem sabido sempre o seu caminho e desta sensibilidade surgem coisas novas que começam com muito entusiasmo. Quando a aldeia se reúne, todos recordam e partilham orações, música, dança e comidas da terra, comuns e especiais.


A Casa Velha está a fazer crescer uma família alargada à medida que abre as suas portas, palheiros, cozinhas, jardins e bosques aos jovens, partilhando com simplicidade, esperança e oração uma visão do horizonte. Portanto, há um sentido familiar de comunidade, de conversar com novos amigos e de trazer amigos, de trabalhar no jardim, de tempo para absorver o crescimento das plantas, das oliveiras e dos animais; paciência em experimentar a vida como dádiva. As canções e os desenhos vindos do fundo do coração.


O lugar torna-se uma referência, uma sólida experiência adulta com liberdade, liberdade para escolhas futuras e compromissos que podem até ser muito diferentes, mas a experiência nunca é esquecida. A alegria é para levar, consolo quando os tempos são difíceis e um bom abastecimento para mudar a vida de alguém. Falamos de gratidão, mas celebração também é uma palavra muito apropriada para a Casa Velha. Uma celebração simples, não são balões, alegria e festa por alguns dias, mas sim uma profunda alegria e boa vontade que nos atravessam, o cuidado e o acompanhamento caloroso e duradouro. A comunhão é partilhada por um tempo, a visão do mundo torna-se mais clara, não se concretiza imediatamente, pode nunca concretizar-se, mas não morre, é o que vejo nos olhos dos jovens.


Os jovens trazem consigo a sua própria cidade e experiências de trabalho, de possíveis experiências de infância com a terra, trazem também os desafios do mundo, as oportunidades, as incertezas e as vulnerabilidades enquanto estão no campo e na quinta; caminham por estas realidades na profundidade do seu próprio ser, com desejo de comunidade e presença de Jesus. Os jovens estão à procura do que é justo, bom e adequado e na unidade e na beleza que partilham e procuram construir, encontram um sentido de verdade, verdade humilde, que não facilmente encontrada no mundo de hoje. O mundo é difícil, injusto e desajustado em muitos lugares e tempos. A Casa Velha não é uma fuga; o mundo precisa de compromisso, de compaixão acessível e de caminhar entre as ruínas das esperanças humanas; esta é uma preparação para o amor duro.


A Casa Velha permite que os jovens explorem o porquê, em paz; não impõe um futuro “o que” fazer, mas oferece um “como”, como participar na missão desta vida, cada qual respeitado como ser único. É por isto que precisamos de mil flores, casas em todo o mundo, pastos verdes onde a juventude não teme o mal e cresce no sentido da humilde verdade e do serviço.



Casa Velha is a landscape of relations, very real and tangible, everything about the village life and land is locally known; it does not come from a google search, but from the mouth of elders and those striding for new life. Casa is family and village; parents are honored and grandchildren celebrated, there is always a sense of home. Difficulties are experienced and family always knows what has been the way, so from this sensitivity new things grow and can be initiated with great enthusiasm. When the village gathers everyone remembers and shares the prayers, music, dance and foods of the land, ordinary and special.

Casa Velha is growing an extended family as it opens its doors, barns, kitchens, gardens and groves to the youth sharing with simplicity, hope and prayer a vision of the landscape. So there is a familial sense of community, of talking with new friends and bringing friends, of working in the garden, of time to soak up the growth of plants, the olive trees and animals; patience in experiencing life as gift. The songs and the sketching coming from deep in the heart.

The place becomes a reference, a solid adult experience with freedom, freedom for future choices and commitments that may well be very different, but the experience is never forgotten. The joy is a take-away, solace when times are difficult and a well-stocked reference for changing one’s life. We talk of gratitude but also celebration is a very appropriate word for Casa Velha. A simple celebration, it’s not balloons, gaiety and fanfare for a few days, rather a deep joy and willingness that pervades, a care and accompaniment that is warming, and lasting. A communion is shared for a time, a vision is formed of the world, it is not achieved in the now, it may never be achieved, but it does not die that is what I see in the eyes of the youth.


The youth bring with them their own city and work experiences, of experiences with the land they may have known as a child, they bring also the challenges of the world, the opportunities, uncertainties and vulnerabilities and while in the field and farm walk through these realities in the dept of their person, desire for community and presence of Jesus. They are searching for what is fare, kind and just and in the unity and beauty that they share and seek to build they find a sense of truth, humble truth, not easily found in today’s world. The world is tough, unfair and unjust in many places and times. Casa Velha is not an escape from this; the world needs commitment, compassion accessible and walking amongst the ruins of human hopes; this is a preparation for tough love.


Casa Velha allows youth explore the “why”, peacefully; it does not impose a future “what” to do, but offers “how”, how to share in the mission of this life, each one respected as unique. This is why we need a thousand flowers, houses across the world, green pastures where youth fears no evil and grows in a sense of humble truth and service.

Uma música, por p. Frederico Cardoso Lemos, sj

Franz Schubert, Sonata nº 20 D. 959, II. Andantino


Há na Casa Velha um piano que veio de longe, trazido por uma francesa, Catherine. Catherine viveu em Paris, uma grande cidade que trocou por uma quinta junto a uma pequena aldeia. Ela veio para casar, aqui construiu o seu lar, tocou piano e lançou raízes que continuam a dar frutos.


Na cidade, o tempo parece voar, quase não dá para respirar. Um retrato musical do tempo como é vivido na cidade poderia ter como andamento um Presto ou Prestissimo. Pelo contrário, na Casa Velha vive-se a uma velocidade que permite respirar, o tempo parece mais distendido e pode ser acompanhado ao ritmo de quem faz uma caminhada. Aqui, o andamento de um retrato musical seria um Andante ou um Andantino. Quer isto dizer que na Casa Velha caminha-se, mas sem pressas, confiando que a seu tempo se há de chegar onde se quer… ou onde se puder. O tempo parece abrandar, mas não pára.


Os primeiros minutos deste andamento da sonata de Schubert são facilmente identificados como o pano de fundo sonoro de dois filmes: Peregrinação Exemplar (Au Hasard Balthazar, de Robert Bresson) e Sono de Inverno (Kis Uykusu, de Nuri Bilge Ceylan).


Por coincidência, o personagem Balthazar – também ele francês – tem um homónimo de carne e osso que vive na Casa Velha. O filme retrata o ciclo da sua vida de burro, as alegrias e tristezas que testemunha nas pessoas que contactam com ele. E também, se se pode dizer deste modo, as alegrias e tristezas que as pessoas que cruzam a sua existência provocam nele. Tudo isto ao ritmo dos compassos de Schubert.


A Casa Velha é testemunha de vários ciclos de vida que se entrecruzam. O ciclo das estações do ano, o ciclo dos trabalhos no campo, o ciclo da vida das pessoas que já ali viveram ou trabalharam, dos que ainda ali vivem ou trabalham ou visitam. Todos estes ciclos atravessados por cores alegres e cores tristes. Tudo isto ao ritmo de dias soalheiros alternando com dias cinzentos ou de tempestade.


Em Sono de Inverno há um hotel pequeno, gerido familiarmente, cujo ambiente se confunde com a casa dos proprietários. Ao chegarem, os hóspedes deixam de ser clientes anónimos, são acolhidos numa casa que tem vida. No enredo cruzam-se pessoas de várias condições, cujas experiências e perspetivas sobre a vida são diversas. Como na história de todos, aqui há momentos de tensão e conflito que contrastam com outros de paz e de reconciliação. É algo que faz mesmo parte da vida. E a vida continua, ao ritmo dos dias, das estações e, também aqui, ao ritmo de Schubert.

O albergue e o agroturismo da Casa Velha possibilitam acolher muitas pessoas, muito diferentes entre si, cada uma com a sua experiência muito concreta. Uns em paz com a vida, outros à procura de sentido; uns atravessando dramas familiares, outros gozando a alegria de viver em família; uns em paz com Deus, outros longe, quando não revoltados contra Ele… Todos são integrados no andamento do tempo, no ritmo da criação, onde o Inverno e a Primavera fazem parte do mesmo ciclo, o ciclo da vida.

Falta mencionar o Bom Pastor que, se deixarmos, nos conduz às águas refrescantes, ainda que por vezes através de vales tenebrosos. Fá-lo ao seu ritmo, no seu andantino, mas respeitando o ritmo das suas ovelhas. Talvez não assobie este trecho de Schubert mas há nele alguma música inconfundível, pela qual O reconhecemos.

Uma metáfora, por Joana Rigato

Diz-nos Jesus que o Reino de Deus é como um grão de mostarda que depois cresce, cresce, cresce até se tornar casa para os passarinhos que se vêm abrigar nos seus ramos frondosos. A Casa Velha, para mim, é o Reino de Deus já aqui, essa árvore aberta, gigante, de múltiplos ramos, onde a minha família encontra abrigo e se aninha, já na Casa do Pai.

Com o meu marido, sempre acreditámos e procurámos uma comunidade, atraídos pela ideia de uma vida partilhada, com ritmos pessoais que se vão adaptando aos ritmos dos outros, em que a nossa família entrelaçasse o seu quotidiano com o de outras pessoas e nos tivéssemos todos de ir desinstalando e apequenando para deixar lugar a vozes e sentires diferentes, com quem fazer caminho. Por outro lado, também sentimos o chamamento da natureza, que nos apazigua, abranda o nosso ritmo, espelha a criatividade do Criador, tornando-nos mais contemplativos e trazendo-nos saúde física e mental, quer a nós quer aos nossos filhos. Nunca nos sentimos tão plenos como quando estamos imersos em espaços naturais e fazemos coisas com as mãos, quando ganhamos tempo para os ritmos de outro tempo, ao cortar as amarras com as falsas necessidades da cidade.


A Casa Velha é uma realidade única para nós, na forma como alia esta forma comunitária de estar e caminhar, ao seu compromisso com este binómio “Natureza e Espiritualidade” que só agora começa a ser mote do modo de ser cristão nos dias de hoje, e que há mais de 10 anos é prática diária em Ourém. Ao longo dos anos, à medida que foi tomando forma, a Casa Velha tornou-se para nós um sinal da presença de Deus no mundo, pela forma como os intervenientes neste processo se foram colocando nas mãos do Pai e deixando-se guiar, com disponibilidade e paciência. Lembro-me do primeiro “Boletim de notícias” da Casa Velha que recebi por email e de como me comovi ao lê-lo. Haviam passado uns três ou quatro anos desde que tinha falado com a Margarida pela primeira vez acerca da sua escolha de começar a dividir-se entre Lisboa e o Vale Travesso, de acompanhar a sua mãe na casa de família e começar a sondar formas de aquela propriedade se poder colocar ao serviço de um chamamento que ela sentia mas ainda não sabia bem definir. Apressada e impulsiva como sou, surpreendia-me aquela calma, aquele tempo dado ao discernimento. Mas depois, ao ver as “Notícias” de 2010 e testemunhar como a Margarida, as suas irmãs, e tanta gente de quem sempre se rodeou, comunitariamente, haviam sido instrumento da criação do Reino de Deus na terra – pois o projeto florescerá, ramificara-se, dera muito fruto – fui invadida por uma sensação de reverência e de tremor. Desde então, continua a ser um privilégio ver isto a acontecer e ver como a Casa Velha pareceu antecipar as preocupações ecologistas do Papa Francisco e da Companhia de Jesus, sendo sinal profético de como essas preocupações podem guiar uma obra de Deus.


A Casa Velha é o lugar feliz dos meus filhos, que perguntam sempre quando é que há mais um “Rezar no Campo” e que, morando no centro de Lisboa, no meio de prédios, sonham ir viver para o meio da natureza porque sabem a alegria que isso lhes traz. É um guia espiritual para mim e o meu marido, que recentemente nos juntámos à “Comunidade Casa Velha” de Lisboa, para aprofundar os seus pilares (“viver abertos e disponíveis”, “viver agradecidos”, “viver com pouca tralha”, etc.) na nossa vida quotidiana na cidade. É, ainda, algo que me enche de esperança, quando às vezes me parece que a Humanidade e o planeta estão demasiado perdidos, demasiado embrenhados numa corrida delirante em direção a um precipício para poderem arrepiar caminho e recuperar. Nessas horas de desesperança, surge a Casa Velha como candeia bem visível para nos alumiar a todos, e nos fazer acreditar que Deus está connosco e providencia, falando a quem sabe escutar e “sabe esperar” (outro dos pilares tão ricos de sabedoria que a Casa Velha tem introduzido na minha vida).
A gratidão que sinto por esta Casa é a gratidão de quem encontra sombra e reparo, debaixo daquela árvore que Jesus prometeu, aquela em cujos ramos vêm pousar as aves do céu.

Uma inspiração, por Henrique Alvim d’Orey

Ao amanhecer, com o sol a iluminar e a trazer alegria à casa, os pássaros começam a cantar. Abrimos as janelas para trocar o ar da noite com o ar da manhã. Há pássaros a voar por todo o lado. Para tomar parte neste concerto, sentamo-nos num lugar onde a luz bata e sentimo-nos em paz e comunhão com a natureza. Há muita coisa a aprender destas pequenas criaturas que trazem tanta alegria a este lugar. Que bom é observar aqui o início e o fim do dia e sentir a presença do Criador.

A sobrevoar lá no alto, a águia dá voltas a olhar para a terra em busca de alimento para as suas crias… De repente salta-lhe à vista uma casa cheia de alegria em que todas as espécies habitam alegres e contentes. Sentem-se bem ali!
Lá do alto, espanta-se com o bom ambiente que existe naquele lugar onde a natureza triunfa. É um lugar que acolhe tudo e todos, que cuida da casa comum.

Regresso a uma casa que sinto como minha, por Nuno Oom

Foi um regresso a uma casa que sinto como minha, para concretizar uma vontade surgida há 7 anos, numa conversa à volta da lareira.

Senti-me um pouco “filho pródigo” que, após uma longa ausência, é recebido com banquetes e afetos e a quem é depositada uma grande responsabilidade. Tive desde o princípio esta dualidade de sentimentos: agradecimento pela oportunidade e desconforto pelo receio de falhar.

O projeto obrigou-me a desenvolver um novo olhar sobre a Casa Velha. Um olhar criterioso, factual, eficaz, focado no bem do projeto e separado das minhas emoções, opiniões e até relações.

Como sonho e missão de “espiritualidade e ecologia”, vi e senti a Casa Velha, por p. José Frazão Correia, sj

i. Casa de família sempre aberta para acolher e para deixar ir: máximo de acolhimento e mínimo de exigências.

ii Lugar de referência afectiva e de sentido para muitas pessoas que vêm e que vão, com diversos tipos de ligação, movidas por diferentes necessidades. Há aqui alguém-algo que acolhe e que faz bem, que restabelece e que reenvia. 

iii. Lugar bem situado e processo fecundo: lugar que gera bem; processo de procura espiritual que se reconhece bem situado neste lugar. 

iv. Contínua evocação e invocação do Bom Pastor, rosto particular de Jesus que vai recordando a origem do sonho, inspirando a alma do lugar, modelando o modo de proceder.

v. Opção e projecto de vida que nasce do discernimento interior de uma pessoa, que vai tocando outros e que, progressivamente, vai envolvendo a família, para se assumir conscientemente e se apresentar visivelmente como presença de Igreja. Quanto mais o apelo e o carisma pessoal que deram origem à Casa Velha tocar a alma e informar este corpo, como ele hoje se compreende e se edifica, menos ficará dependente do apelo e do carisma pessoal de uma pessoa, já que passará a ser cuidado e cultivado pelo próprio corpo, no conjunto dos seus membros. 

vi. Lugar-processo identificável entre o património material e imaterial familiar, o entorno natural e o edificado em requalificação lenta, segundo os novos apelos da missão, à medida da maturação das coisas, das possibilidades humanas e da disponibilidade dos meios. 

vii. Espaço cuidado, autêntico e belo, sem obsessão com a ordem “perfeita” ou com a fachada. Convive bem com o que está por acabar, com as ervas daninhas, com as paredes por pintar, com o mato por cortar.  Há sempre tarefas por começar ou por concluir. Por saber que não serem fins em si mesmos, convive tranquilamente com o inacabado e com o “imperfeito”. É neste inacabado que acolhe quem vem, sem querer parecer ser outra coisa. Intui-se aqui que a beleza que salva o mundo não é a “beleza grega”, mas a beleza simples da autenticidade e da entrega. Trata-se de um modo de ser e de estar performativo. Vai incidindo e deixando a sua marca, ainda que de forma não necessariamente reflexa ou intencional. Não sendo lugar-processo que cabe no cliché cultural – e talvez eclesial – do “perfeito”, está mais apto para acolher e atender às vidas e aos processos de vida que se reconhecem imperfeitos e em caminho. 

viii. Projecto de fé em discernimento e missão em elaboração. Cuida convictamente das raízes e cultiva com gratidão a memória material e imaterial do património herdado. Procura elevar-se progressivamente na escuta de um apelo espiritual que pressupõe e implica o quadro familiar, mas que o excede. Em instâncias diversas, vai discernindo o apelo à missão, implicando-se progressivamente nela. Confessa com simplicidade a própria fragilidade, a de ser lugar e modo de ser inacabado, simples e frágil, querendo assumi-la, não como limite a superar ou problema a resolver, mas como condição constitutiva e propícia de fecundidade espiritual e de acerto apostólico. 

ix. Processo em busca de se compreender e de se edificar como corpo uno e orgânico em missão, no qual  cada membro se reveja, se reconheça e se implique na sua particularidade. Quer ter claro que a unidade e organicidade do corpo e dos membros virão da seiva espiritual que os anima e da missão partilhada que os mobiliza. 

x. Plano estratégico amplo e consistente, em tensão com recursos materiais escassos e uma estrutura humana mínima que lhe dê corpo. No seu custo, esta tensão terá a sua fecundidade própria, na medida em que não se desequilibre, nem para uma estrutura eficiente e fim em si mesmo que tudo garanta, nem para um carisma idealizado que se imponha como projecto perfeito à revelia da contingência do lugar e do ritmo, por vezes lento, das pessoas e dos tempos.

xi. Ambiente que tem algo de feliz conjugação de estilo monástico com vida laical, o que o torna lugar processo apostolicamente promissor, num tempo que pede outras formas de testemunho evangélico e outros lugares de presença eclesial.

xii. Adesão consciente a uma ecologia integral como lugar-processo espiritual, social, económico, cultural, entendendo-a sobretudo como conversão pessoal e institucional que gera opções, modos de proceder e estilos de vida que desejam possuir menos para viver melhor. 

xiii. Desejo de se constituir como lugar de encontro, catalisador de conversão acológica, sendo que cada palavra desde desejo tem peso próprio. Constituir-se. Já é tanto e ainda está tão longe de ser tudo o que pode ser. É, por isso, desejo de ser mais lugar de encontro, em altura, extensão e profundidade, radicado no contexto territorial e social próximo, mas com vocação universal. Lugar. Lugar-processo ou processo lugar, paisagístico e edificado, natural e cultural, familiar e aberto, de memória e de missão, de escuta e de compromisso, de trabalho e de fruição, de respeito e de modelação. De encontro. Confluência e reenvio.  Sentir comum e acolhimento de tantas diferenças, de estados e de ritmos de vida. Acolhimento e abertura a algo maior, que não se dá sem as partes que se encontram na sua diferença. Catalisador. Intencionalidade própria. Promotor de compreensão, de implicação, de transformação. Conversão ecológica. Outro olhar, outra escuta, outro toque, outro apreço. Outro sentir-se em contacto com os outros, com a natureza, com o Senhor da vida e de colher aí uma interpelação. Outro estilo de vida e de relações. Outra forma de presença de Igreja neste tempo, junto das pessoas reais.

xiv. Casa e quinta que, no seu conjunto, podem ser vividos como claustro monástico para leigos que habitam regularmente a vida da cidade (mesmo no campo, as grandes marcas da vida urbana tendem a assinalar profundamente as formas como hoje nos compreendermos e nos exprimimos), conjugação feliz de natureza e de cultura, de contemplação e de criação, de repouso e de trabalho, de fruição e de estudo.

Coimbra, 25 de Novembro de 2020