Uma música, por p. Frederico Cardoso Lemos, sj

Franz Schubert, Sonata nº 20 D. 959, II. Andantino


Há na Casa Velha um piano que veio de longe, trazido por uma francesa, Catherine. Catherine viveu em Paris, uma grande cidade que trocou por uma quinta junto a uma pequena aldeia. Ela veio para casar, aqui construiu o seu lar, tocou piano e lançou raízes que continuam a dar frutos.


Na cidade, o tempo parece voar, quase não dá para respirar. Um retrato musical do tempo como é vivido na cidade poderia ter como andamento um Presto ou Prestissimo. Pelo contrário, na Casa Velha vive-se a uma velocidade que permite respirar, o tempo parece mais distendido e pode ser acompanhado ao ritmo de quem faz uma caminhada. Aqui, o andamento de um retrato musical seria um Andante ou um Andantino. Quer isto dizer que na Casa Velha caminha-se, mas sem pressas, confiando que a seu tempo se há de chegar onde se quer… ou onde se puder. O tempo parece abrandar, mas não pára.


Os primeiros minutos deste andamento da sonata de Schubert são facilmente identificados como o pano de fundo sonoro de dois filmes: Peregrinação Exemplar (Au Hasard Balthazar, de Robert Bresson) e Sono de Inverno (Kis Uykusu, de Nuri Bilge Ceylan).


Por coincidência, o personagem Balthazar – também ele francês – tem um homónimo de carne e osso que vive na Casa Velha. O filme retrata o ciclo da sua vida de burro, as alegrias e tristezas que testemunha nas pessoas que contactam com ele. E também, se se pode dizer deste modo, as alegrias e tristezas que as pessoas que cruzam a sua existência provocam nele. Tudo isto ao ritmo dos compassos de Schubert.


A Casa Velha é testemunha de vários ciclos de vida que se entrecruzam. O ciclo das estações do ano, o ciclo dos trabalhos no campo, o ciclo da vida das pessoas que já ali viveram ou trabalharam, dos que ainda ali vivem ou trabalham ou visitam. Todos estes ciclos atravessados por cores alegres e cores tristes. Tudo isto ao ritmo de dias soalheiros alternando com dias cinzentos ou de tempestade.


Em Sono de Inverno há um hotel pequeno, gerido familiarmente, cujo ambiente se confunde com a casa dos proprietários. Ao chegarem, os hóspedes deixam de ser clientes anónimos, são acolhidos numa casa que tem vida. No enredo cruzam-se pessoas de várias condições, cujas experiências e perspetivas sobre a vida são diversas. Como na história de todos, aqui há momentos de tensão e conflito que contrastam com outros de paz e de reconciliação. É algo que faz mesmo parte da vida. E a vida continua, ao ritmo dos dias, das estações e, também aqui, ao ritmo de Schubert.

O albergue e o agroturismo da Casa Velha possibilitam acolher muitas pessoas, muito diferentes entre si, cada uma com a sua experiência muito concreta. Uns em paz com a vida, outros à procura de sentido; uns atravessando dramas familiares, outros gozando a alegria de viver em família; uns em paz com Deus, outros longe, quando não revoltados contra Ele… Todos são integrados no andamento do tempo, no ritmo da criação, onde o Inverno e a Primavera fazem parte do mesmo ciclo, o ciclo da vida.

Falta mencionar o Bom Pastor que, se deixarmos, nos conduz às águas refrescantes, ainda que por vezes através de vales tenebrosos. Fá-lo ao seu ritmo, no seu andantino, mas respeitando o ritmo das suas ovelhas. Talvez não assobie este trecho de Schubert mas há nele alguma música inconfundível, pela qual O reconhecemos.